Jornalismo
Uma vénia aos profissionais do H. S. João
Em Abril, escreveu-se aqui no blog: “A recente polémica em torno da reorganização hospitalar é apenas mais um exemplo na longa tradição das reformas “a régua e esquadro”, concebidas em obscuros gabinetes da capital, e que, por força de decreto lei ou portaria, vêm impor como cidadãos, empresas ou qualquer organização que se pretenda instalar neste cantinho, deverá funcionar.”
A recente notícia da demissão coletiva no H.S João, é um dos poucos casos em que uma organização “bateu o pé” às diretivas vindas de Lisboa. De facto, como aqui no blog se tenta demonstrar, a crise tem sido usada para acentuar (ainda mais) o centralismo asfixiante que já existia neste país.
A cobertura noticiosa do caso tem insistido na lengalenga (na narrativa…) da “luta contra os cortes impostos pela austeridade”, mas, ao ler algumas notícias que abordam este assunto com maior profundidade, é possível compreender melhor o que está na origem da demissão:
“"Os presidentes dos conselhos diretivos de todas as Unidades Autónomas de Gestão, das áreas clínicas, do centro hospitalar de S. João, EPE (CHSJ), têm sido confrontados com uma completa ausência de meios efetivos de gestão, devido a um progressivo esvaziamento da autonomia, conferida legalmente pelos estatutos de uma entidade pública empresarial e que atingiu a insustentabilidade, apesar de todo o empenho do conselho de administração"
De facto, esta demissão está diretamente ligada à lógica de gestão centralista que domina a organização administrativa do país. Se, na “era pré-troika” os organismos da capital já tinham um poder excessivo, sob o pretexto da implementação dos cortes de despesa essa concentração de poderes foi ainda reforçada, ao ponto da tomada de decisões de gestão corrente (contratação de um funcionário, aquisição de um equipamento, viatura, etc.) de organizações tão complexas como um hospital estarem dependentes do visto de um burocrata do ministério da tutela (Min. da Saúde, neste caso ) e outro das Finanças.
Claro que algum controlo dos organismos centrais teria (e terá) que existir, mas esse controlo – em vez de sequestrar a gestão das entidades espalhadas pelas diversas regiões do país – deveria agir de acordo com os resultados de gestão atingidos: premiando aqueles que demonstram maior eficiência e apresentam melhores resultando e penalizando os outros.
O que se passa em Portugal, e que este caso do H.S. João demonstra na perfeição, é perversidade do sistema centralista que está instalado. Desde o início desta crise (e esta começou ainda no tempo de Sócrates, recorde-se), foram impostas - através de portarias e decretos - uma série de limitações à gestão de tudo o que é organismo, instituto ou empresa pública.
No entanto, como aqui no blog já se referiu, "não são estes cortes cegos e transversais que têm vindo a ser implementados” a solução, pois tratam por igual as organizações bem geridas e as mál geridas. E aqui reside uma parte da perversidade do processo que estamos a passar. Basta pensar no seguinte exemplo: imagine duas empresas públicas do mesmo sector:
- A empresa A apresenta uma gestão equilibrada fruto da gestão eficiente dos seus recursos humanos, técnicos, etc.;
- A empresa B, fruto de anos de má gestão, apresenta uma estrutura de pessoal mais pesada, com custos operacionais substancialmente superiores e, consequentemente, piores resultados.
Quando, um qualquer decreto do governo central, vem determinar a obrigatoriedade de um corte de 10% nos custos operacionais de ambas as empresas, qual delas corre sério risco de não a conseguir cumprir?
Qual delas tem melhores condições para cortar apenas nas “gorduras” e deixar o “músculo” intacto? O mais provável é que a empresa mal gerida, com bastantes "gorduras", consiga cumprir os objetivos ao contrário da mais eficiente...
Neste capítulo, e obrigatório ler esta entrevista de António Ferreira (Administrador do H. S. João), de onde se extrai o seguinte excerto:
"
[Jornalista] Acusa o SNS favorece algumas regiões em detrimento de outras…
[A. Ferreira] É uma evidência. E é assim há muitos anos. A diferença entre o financiamento per capita atribuído à região de Lisboa e Vale do Tejo ao Alentejo e à região Centro e o que é atribuído à região do Porto e ao Algarve é verdadeiramente abissal. Sem que daí resulte qualquer relação positiva em termos de resultados em saúde. Bem pelo contrário. Os dados mostram que regiões com menor financiamento per capita apresentam melhores resultados."
Como é fácil de entender, que outro sentimento, senão revolta e desmotivação, poderão sentir aqueles profissionais que, sabendo serem os melhores na sua área, se veem impedidos no dia-a-dia de trabalhar, de gerir, para, por ex., substituir um equipamento obsoleto, ter de pedir autorização a um qualquer burocrata instalado na capital!?
Outro aspeto da perversidade do processo que estamos a passar, é o esvaziamento do (pouco) poder que ainda restante fora da capital e o fortalecimento do centralismo.
O clima criado pela situação atrás descrita gera autênticas “guerras de poder” entre os organismos centrais e os regionais. Como vivemos no país do “respeitinho” e onde uma vasta quantidade de lugares de chefia dependem da “confiança politica”, a atitude normal é “não fazer ondas”, acatar as ordens hierárquicas vindas de Lisboa para conservar o lugarzinho… Paulatinamente, a autonomia de gestão desaparece e, cada vez mais, o centro de decisão afasta-se do terreno e fica entregue aos burocratas dos ministérios, às entidades reguladoras, fiscalizadoras, etc…
Parabéns, assim, aqueles profissionais pela coragem em “bater o pé” ao poder instalado. Um poder cada vez mais parecido com uma nova espécie de aristocracia - onde os decretos e as portarias, vieram substituir o direito de berço da monarquia -, e uma nova corte, composta por uma série de organismos (cada vez mais distanciados da realidade e o terreno) que através dos privilégios concedidos, nomeadamente, crescentes poderes de supervisão e controlo, vão ditando as regras...
É essencialmente por este fenómeno que ocorreram as demissões no H.S João! Olhemos a alguns excertos do comunicado dos demissionários:
"A reforma hospitalar tem-se traduzido mais pela constituição de repetidos grupos de trabalho, cujos relatórios não chegam à implementação, faltando verdadeiras decisões que impeçam a deterioração do funcionamento hospitalar", afirma o grupo demissionário.” (JN)
“É ainda apontado como motivo para a saída em bloco o "impedimento da ação gestionária do Conselho de Administração e das estruturas intermédias de gestão do Centro Hospitalar, por via da centralização administrativa, no que concerne a políticas de recursos humanos, investimentos, manutenção estrutural, infraestrutural e de equipamentos e compras, que afetará gravemente a prossecução da sua missão e a atividade assistencial, apesar de, reiteradamente, o Centro Hospitalar de São João apresentar resultados económico-financeiros positivos e resultados clínicos e assistenciais ao nível dos melhores da Península Ibérica". (JN)
Outro excerto (Expresso): “Entre os diretores do S. João, há a convicção de que o ministro será um dos principais apoios da administração do hospital dentro do seu ministério, mas "referem outros interesses e alguma oposição à equipa do S. João no seio da própria equipa de Paulo Macedo".
O que se passou com o H.S. João, passa-se com muitas outras instituições (na área da Justiça, do Ambiente, da Educação, etc.). O centralismo é um poder antidemocrático que tudo paralisa (neste caso, como vimos, sob um falso pretexto de controlo de despesa).
Aliás, chegamos ao caricato de, a pretexto de reduzir a despesa das organizações fora de Lisboa, vermos os ministérios do Terreiro do Paço justificarem a contratação de mais colaboradores pelas necessidades criadas de executar essas novas funções de controlo… mais umas vagas se abrem para empregar os boys e os descendentes das boas famílias da capital.
De cada vez que um novo patamar de poder é centralizado (usurpado…), dificilmente existe um recuo. No momento seguinte, a propósito de uma “agilização de funcionamento” é criado um novo organismo / estrutura que passa a ser incumbido de responsabilidade na supervisão deste e daquele organismo.
Assim nasce um novo ramo do organigrama do monstro que é a Administração Pública.
Para finalizar recordar este post de Abril de 2014:
“Não será antidemocrático o nível de centralismo a que o País chegou? Ter um punhado de burocratas que a partir de Lisboa decidem quais as escolas que funcionam e as que encerram, como se (re)organizam tribunais, centros de saúde e hospitais, etc., deve fazer-nos pensar: este modelo de administração será mais consentâneo com os valores democráticos ou com a visão própria dos regimes colonialistas?”
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