A experiência da memória: breve comentário sobre lembrar em público da ditadura
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A experiência da memória: breve comentário sobre lembrar em público da ditadura


Cinquenta anos do golpe civil-militar! Nesta semana, há milhares de opiniões sendo expostas sobre os detalhes, os impactos, as causas, os crimes da ditadura. Tanta informação e tantas opiniões exigem uma grande capacidade de decodificação e processamento. Fala-se muito na necessidade de lembrar, na memória do que houve, mas o fato é que há pouca compreensão de fato sobre o que é a "lembrança pública", isto é, em que medida algo que aconteceu no passado de fato influencia ou pode influenciar o comportamento público.
Por um lado, é preciso saber para que serve "instrumentalmente" lembrar da ditadura para atuar na democracia de hoje. Em seu artigo de hoje na Folha de S.Paulo, "A ditadura venceu", o filósofo Vladimir Safatle diz que não há exercício de memória pública possível quando não houve efetivamente transição de políticos. Mudou o regime político, em algum sentido, e ficaram os políticos. Não conseguimos pôr em ação a memória para atuar na democracia, porque não temos ainda que fazer o exercício de memória, temos de romper com o nexo com o regime de exceção oculto. Por outro lado, não consigo lembrar da ditadura de antanho, pois vivo a mesma ditadura, em silêncio, parece dizer-me o filósofo. A estratégia da memória confunde-se portanto na da democratização, do aprofundamento democrático. Assim, o exercício de memória pode ser inócuo se tento diferenciar a sociedade brasileira de hoje com a de um passado pior, ruim, nefasto, pois o que vivemos hoje, se de fato há a continuidade exposta por Safatle, é o pior, o ruim, o nefasto. Assim, a memória serve para reconhecer a regularidade, não como um exercício para impor uma barreira entre aquilo que vivo e aquilo que vivi, pois, diz Safatle, o passado e o presente são equivalentes. Também vai nessa linha o artigo do filósofo Edson Teles, na Agência Carta Maior, do qual reproduzo trecho:

Coloca-se em ação a memória vencedora da transição, representante de um consenso ficcional, construído sob o silêncio do pacto pela redemocratização em oposição aos corpos desaparecidos, assassinados e torturados. Replica-se a ideia dos dois demônios, em democracia, com a leitura de ainda ocorrer um conflito entre a memória das vítimas, revanchista e que tudo quer lembrar, e a dos militares, violenta e adepta do esquecimento da violência do Estado. Ora mobilizando um aspecto, o da lembrança, ora outro, o do esquecimento, se constrói o silêncio sobre o passado, com a ausência de escuta dos movimentos sociais. [...]

Passados 50 anos do golpe militar de 1964 temos uma lógica de governo que aposta na política do possível expressa, no caso das ações de memória acerca da ditadura, pelo bloqueio dos atos de justiça e de efetiva democratização do Estado e de suas instituições. Por outro lado, para os movimentos sociais, o que não deveria ser possível em uma democracia é a impunidade da tortura sob o argumento de que a anistia, aprovada em 1979 e renovada na Constituição de 1988, seria fruto da “reconciliação nacional”, como o fez o Supremo Tribunal Federal em maio de 2010.
 
Por mais estranha que pareça a afirmação de que vivemos uma continuidade entre ditadura e democracia, faz todo sentido os discursos dos movimentos sociais que apontam nesta direção.
 
Não se trata aqui de estabelecer uma indistinção entre democracia e ditadura. Nem mesmo de negar ou desprezar os tímidos avanços conquistados – como são os casos das comissões de indenizações e a da Verdade. Ao contrário, trata-se de termos pleno conhecimento de que sob a superfície do discurso de uma governabilidade consolidada e exemplar, encontramos formas de agir cuja astúcia é serem autoritárias sob um viés democrático.


Uma segunda consideração analítica diz respeito à capacidade esperada de que a memória, o compartilhamento efetivo do passado, vá ter algum impacto sobre o presente. Está clara essa questão numa faixa estendida em protesto a um professor de Direito da USP aparentemente fazendo uma fala em sala de aula a favor da ditadura em que se lê: "Lembrar é resistir". É um passo além do uso instrumental da memória. Trata-se de lembrar como parte de um projeto político mais amplo, não apenas de ruptura, mas de proposta. Se a democracia não é efetiva, e é preciso resistir, também é necessário estabelecer um exercício de ir-além. A efeméride dos cinquenta anos do golpe, numa noção de politização da memória, deve vir acompanhada da noção de "outros cinquenta". O tipo de sociedade que se constituiu desde 1964 não é suficientemente bom e devemos apresentar-lhe uma alternativa. Para chegar a essa alternativa é preciso saber reconhecer quem é quem no sistema político atual em relação a sua efetiva participação ou apoio velado à ditadura do passado-presente.
Uma última consideração diz respeito ao tipo de memória política a ser feito. No geral, pelo que li, houve um grande esforço de relatar com detalhe naturalista o que se viveu no passado. É um esforço relevante e especialmente pertinente na medida em que muitas personalidades que tiveram impacto nesse processo estão vivas. Ver por exemplo o impressionante trabalho feito pela Agência Pública. Há outro esforço que me parece menos desenvolvido em torno de encontrar a medida com que esse tipo de regime de exceção torna-se compatível, até com relativa facilidade, com o modo de organizar a economia capitalista, pelo menos no modelo tático de acumulação, da década de 1960 e hoje. Há uma instigante entrevista com o economista Fábio Antonio de Campos, que recomendo. Cito trecho abaixo:

A economia é fundamental para entender o alcance e os limites da ditadura como instrumento do capitalismo brasileiro. A ditadura serviu para garantir a expansão do desenvolvimento capitalista brasileiro definido a partir de JK, ou seja, a industrialização pesada dinamizada pelo capital internacional em proveito dos diferenciais do mercado interno, estabelecidos pela elevada concentração de renda que garantia a valorização à custa da superexploração do trabalho. À medida que se avançava na industrialização intensificando a dependência externa e o subdesenvolvimento, os limites estruturais que se impunham (financiamento e liberalização cambial), exigiam reformas institucionais que aperfeiçoassem o modelo econômico funcional ao complexo multinacional.
O Golpe de 1964 e a ditadura tiveram essa função, ou seja, viabilizar um tipo de indústria que recolocava nossos dilemas de formação histórica numa situação ainda mais dramática. Os problemas que surgem desse período, como desaceleração do crescimento, redução na taxa de investimento, aumento da desigualdade, desemprego e estatização da dívida externa só podem ser compreendidos dentro da “contrarrevolução brasileira”. Na essência, ela significou o divórcio dos meios estruturais que tinham, na utopia de desenvolvimento nacional, os fins. O antagonismo que se abriu nos anos 1950, acirrando em forma de inúmeros conflitos e lutas na segunda metade dos anos 1960, foi enfrentado com uma rota desenvolvimentista antinacional, antidemocrática e antissocial.
Enquanto a ditadura serviu para viabilizar os interesses do complexo multinacional, que, aliás, tinham na industrialização seu eixo de valorização capitalista, ela cumpriu seu papel, mas quando a própria articulação imperialista entre a economia brasileira e o padrão mundial de acumulação teve que ser realinhada em favor do capital internacional, ela perdeu sua função.

A entrevista estabelece uma conexão efetiva entre o regime de exceção e a lógica da acumulação de capital no processo de modernização conservadora. A intuição é partilhada -- a ditadura era efetivamente propícia ao tipo de reforma liberalizante extremada que estava em germe --, mas o que o economista coloca é uma análise mais sistêmica de mecanismos que identificam a conexão e verificam a intuição. Em paralelo ao detalhamento necessário do que de fato há para ser lembrado, aqui está um exercício de investigação em nível mais elevado de abstração, que parece dar sentido geral aos casos chocantes que vêm cada vez mais à tona do passado e que são os casos de nosso dia-a-dia.



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