Jornalismo
Internet e Ensaísmo
Capa do site Digestivo Cultural
por
Julio Daio Borges*Desde o final da década de 90, eu ouço que a internet só comporta textos curtos. A justificativa seria de que as pessoas não querem mais ler, não têm mais tempo etc. Talvez seguindo esse princípio, comecei o Digestivo Cultural em 2000 com “notas curtas”, que eu distribuía semanalmente em forma de newsletter. Confesso que também queria experimentar nesse formato. Soava leviano e engraçadinho. Às vezes, definitivo. Algumas pessoas não gostavam; a maioria se divertia.
Em 2001, vieram as “colunas”, de colaboradores jovens. Em 2002, os “ensaios”, de jornalistas e escritores veteranos. Já em meados da década de 2000, vieram as “entrevistas”. De 5 a 10 mil toques passamos a 15 e, às vezes, 20 mil toques. Não esqueço de uma coluna da Daniela Sandler em que ela conclamava os leitores a “lerem até o fim”. Em quase uma década, foram inúmeros os textos “encaminhados”, aconselhando o destinatário a “ler até o fim” (porque “valia a pena”). E aquelas minhas notas curtas foram igualmente aumentando de tamanho: se originalmente cabiam todas numa única página de Word, agora cada uma ocupava um página, às vezes mais de uma...
(Mesmo aqui: eu pedi mais espaço, porque não sabia se daria para desenvolver um raciocínio em até 3 mil toques.)
Algumas pessoas, certamente, vão argumentar, evocando Montaigne, que o pai do ensaísmo não precisava, muitas vezes, de grande espaço para tratar de um assunto. É verdade. Eu mesmo: às vezes acho que resolvo melhor um tema numa nota, do que num texto longo. Mas para pensar, como diz Harold Bloom, é preciso memória, então, para raciocinar em profundidade, é preciso de espaço. (Normalmente.)
Tudo isso para fechar com uma primeira ideia: com a experiência do Digestivo, ficou provado, para mim, que a internet não precisava se compor apenas de notas curtas. E que, portanto, poderia ser profunda.
Esse primeiro mito dos “textos curtos”, geralmente, vem acompanhado de um outro, em que, também, não acredito em absoluto: o de que as pessoas estão lendo cada vez menos. Essa discussão, a meu ver, remonta a Marshall McLuhan, quando afirmou, nos anos 60, que a palavra escrita iria ser substituída por imagens, no auge da televisão.
A internet, mais uma vez, reverteu essa tendência. Porque a Web – a interface da internet – foi concebida como uma plataforma para textos. Eu descobri que Tim Berners-Lee, o pai da criança, não queria imagens na Web – pois queria preservar a internet para “trabalhos acadêmicos” (sem interferência do “grande público”, com seus “diarinhos” e “fotos de gatinhos”). Coube a Marc Andreessen, o inventor do Mosaic (o primeiro navegador), introduzir scripts para imagens, no início dos anos 90.
E, desde o final dos mesmos 90, eu ouço que o texto, na internet, vai sucumbir às imagens, aos sons e ao audiovisual (à lógica da televisão, em suma). Naquela época, atribuíam a predominância dos textos às limitações técnicas (leia-se: internet discada). A banda larga veio, a Web 2.0 também, mas um dos maiores fenômenos destes nossos tempos, justamente, é o Twitter: que só comporta textos, que mal comporta links e que praticamente não comporta imagens. Alguém poderia objetar – como diria o Nélson Rodrigues – que o Facebook, o maior site do planeta hoje, é literalmente um “álbum de fotos”. Mas o Google, o ex-maior site do planeta, é, praticamente, só texto (ainda).
Tudo isso para fechar com esta segunda ideia: estudiosos já chegaram à conclusão de que a humanidade se comunicou “por escrito” a maior parte do tempo (aliás, o que separa “História” da “Pré-história”?). Portanto: o telefone, o rádio e a televisão seriam apenas um “interlúdio”... para a volta triunfal da escrita, como principal veículo da comunicação humana (através da Web).
Talvez não se leiam mais “livros” como antes, mas se lêem mais “escritos” com certeza.
Para encerrar, uma terceira e última colocação: eu acredito, como muitas outras pessoas, que a internet preenche o vazio, deixado pelos jornais, no que diz respeito à discussão de ideias, como uma espécie de “arena pública”, essencial ao processo democrático. A exemplo do que a imprensa era nos seus primórdios; assim como a prensa foi crucial para a reforma religiosa; e como os jornais o foram para a independência dos Estados Unidos...
No começo da internet, nossos periódicos já quase não cumpriam esse papel, porque estavam correndo atrás dos prejuízos deixados por maus investimentos feitos em TV a cabo. As redações encolhiam, os veículos dependiam cada vez mais das assessorias (e das agências de notícias), enquanto dispensavam colaboradores veteranos (e onerosos) – ironicamente, os únicos com bagagem... para discutir ideias.
No extremo oposto, muita gente boa já chamou a blogosfera de “a maior conversação da história”. Talvez não com a mesma profundidade de um Montaigne, que dialogava com os clássicos, gregos e romanos, mas devemos considerar que os blogs têm poucos anos de vida, estamos aprendendo a falar ainda, a discutir, a ouvir... Abrimos a “caixa de pandora” da comunicação, estamos vendo como ficamos no espelho, estamos propagando nossas idiossincrasias, estamos atacando reputações que nos parecem excessivas...
Enfim (juntando as três coisas): eu tenho certeza de que a internet pode ser profunda, de que, graças a ela, estamos retomando a leitura (e a escrita), e de que, gradativamente, vamos retomar o melhor da discussão de ideias e, voilà, do ensaísmo. Montaigne, se conhecesse a Grande Rede, talvez se assustasse com ela, com a sua multiplicidade de vozes, preferindo a quietude de sua biblioteca inesquecível. Mas se é, igualmente, certo que as bibliotecas estão, progressivamente, migrando para a Web, será apenas uma questão de tempo até surgir... o Montaigne da internet.
E o ensaísmo fechará mais um ciclo. ;-)
* Julio Daio Borges é editor do site Digestivo Cultural.
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