Jornalismo
O que resta da transição: entrevista do Gabriel Fabri com o cientista político Milton Pinheiro
Transcrevo abaixo excelente entrevista com o cientista político Milton Pinheiro, organizador do recém lançado "Ditadura: o que resta da transição", pela editora Boitempo. Notem que o entrevistador é "nosso" Gabriel Fabri!
Link: http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/03/50-anos-golpe-e-preciso-completar-transicao-democratica/
50 anos do golpe: “É preciso completar a transição democrática”
Gabriel Fabri
Nos 50 anos do golpe militar, o livro “Ditadura: o que resta da transição” (Boitempo) traz 12 ensaios de pensadores como João Quartim de Moraes, Anita Prestes, Lincoln Secco, Décio Saes, Marco Aurélio Santana, entre outros. A coletânea, lançada neste mês, é organizada pelo cientista político Milton Pinheiro e traz um olhar crítico sobre as dinâmicas de poder no regime militar desde o contexto por trás do golpe até a campanha das “Diretas Já”. Em entrevista à Fórum, Pinheiro destaca quais características dos anos de chumbo ainda permanecem na sociedade brasileira. Para o cientista político, as continuidades do regime são “imensamente maiores” do que as rupturas. Confira a entrevista a seguir.
Fórum – Quais são as peculiaridades da transição brasileira para a democracia?
Milton Pinheiro – Ela é, em linhas gerais, sue generis. No Brasil, foi produto de uma articulação pelo alto, por aquilo que nós conhecemos na ciência política como via prussiana. Trata-se de um acordo de segmentos da burguesia para superar o regime autoritário, não no sentido de atender às demandas sociais e populares, mas especialmente para fazer avançar uma forma de gerência econômica que trouxesse uma extração maior de riquezas para esses setores e marcasse um modelo de desenvolvimento para o Brasil.
Fórum – O que implica para a democracia o fato de a transição ter sido feita com o auxílio do regime?
Milton Pinheiro – A democracia formal brasileira é marcada essencialmente por traços longevos de autoritarismo. O Brasil do século XX foi um país bastante movimentado na década de 1910, que viveu longo período de Estado de Sítio na década de 1920, depois teve uma ditadura por 15 anos (se contarmos todo o governo Vargas), um breve intervalo democrático e voltou a uma ditadura em 1964. Você pode entender de certo modo que a tutela de amplos setores do empresariado brasileiro, basicamente o financeiro e o industrial, em consonância com os militares dirigidos pela doutrina de segurança nacional, pautou esse tipo de sociedade autoritária, esse modelo de democracia formal. O Brasil é um país emblematicamente marcado pelo autoritarismo e por um modelo de transição sempre articulado pelos setores políticos de uma classe social, no caso a burguesia. Poderíamos dizer que há um eterno pacto de elites para governá-lo.
O fato de a transição ter tido a participação do regime militar, e ter sido articulada com setores moderados da política brasileira, vai deixar um caldo de cultura que sempre possibilita um acordo para resolver problemas. Então, quando se quer modificar a Constituição, fazem um acordo o governo, setores empresariais e o parlamento, agindo sempre em contradição com os interesses da sociedade e dos trabalhadores. Esse modelo de negociação pelo alto é a principal implicação dessa articulação, que contou anteriormente com a presença do regime para resolver os impasses políticos no País. Ocorreu dessa forma durante o governo Sarney, no impeachment de Collor – com ampla pressão de massa, porém – e nas mudanças constitucionais que Fernando Henrique e Lula fizeram. Trata-se sempre de uma articulação pelo alto de setores da elite brasileira e de seus parlamentares representativos.
Fórum – O prefácio de Marcos Del Roio classifica o regime militar como uma ditadura de classe “militar burguesa”. Já a democracia brasileira é classificada como “novo regime de dominação burguesa”. Como se deu a construção dessa hegemonia, processo que o autor chama de “revolução passiva”?
Milton Pinheiro – A transição brasileira vai espalhar suas características culturalmente por um longo tempo na sociedade brasileira. Esse tipo de situação, chamada por ele de “revolução passiva”, através dos estudos do pensador Antonio Gramsci, denota sempre o controle das elites sobre o Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, a liberalização de pequenas reformas que atendam minimamente questões cruciais da população. Essa é uma forma de conter o avanço dos trabalhadores nas lutas por questões mais imediatas, para que eles não tomem medidas radicais.
Fórum – Na prática, as continuidades do regime militar seriam maiores que as rupturas?
Milton Pinheiro – As continuidades são imensamente maiores. Nós não temos um corte, em nenhum seguimento da vida nacional, que denotasse uma ruptura. Pelo contrário, temos o aprofundamento da continuidade: o que tinha de extremamente positivo na Constituição de 1988 foi modificado, como as reformas da previdência, que foram feitas para atacar os interesses dos trabalhadores, e a precarização de trabalho em legislação, que aumenta a jornada. As continuidades são profundamente maiores e temos como afirmar a partir de diversos exemplos.
Fórum – E quais seriam esses outros exemplos?
Milton Pinheiro – O ataque à liberdade de manifestação. O cidadão que anteriormente poderia ir à rua manifestar contra qualquer questão que atacasse seus direitos ou sua liberdade de pensamento, hoje, por essa nova lei em discussão no Congresso, vai ter que marcar o dia, ter um local específico e pedir autorização. Isso não é só uma continuidade, mas sim um retroagir das liberdades democráticas nesse País. Também vale para os diversos decretos-lei baixados pela Presidente da República e, de certo modo, para a autonomia que os governadores têm em relação a isso. Por exemplo, o Cabral criou, a partir de decreto, a possibilidade de prender em casa aqueles que acha que é inimigo do Estado nas manifestações no Rio de Janeiro. E o Alckmin, em São Paulo, também achou por bem criar decretos semelhantes a esse. Tudo isso como caldo de cultura retroalimentando o que se tinha na ditadura militar.
Fórum – O senhor inicia o seu artigo no livro com a seguinte frase de Johann Wolfgang von Goethe: “Quem desconhece o passado condena-se a repeti-lo”. Ainda há muita desinformação em relação ao período militar?
Milton Pinheiro – Sim, o brasileiro tem com a memória uma parca relação. Parece que ela é da era digital: você tem um “delete” que funciona numa violência tão grande que, em questão de pouco tempo histórico, já se desconhece profundamente o que se teve. Acho que o brasileiro mediano desconhece o que ocorreu com a ditadura militar. Veja essas marchas que foram convocadas para comemorar o golpe de 1964…
É uma falácia profunda dizer que no tempo da ditadura era melhor que hoje. Foi um período de trevas, quase que medieval. É importante redescobrir esse momento para entender a sua violência e a sua iniquidade. O Estado nunca matou tanto oponente político como entre 1964 e 1985. E essa impunidade dos crimes do Estado brasileiro hoje, em especial pela ação da polícia militar, é reprodução, em outro estágio, da violência da ditadura, quando não pune os seus prepostos. Veja recentemente o caso daquela senhora Claudia, baleada e depois arrastada pela via pública no Rio de Janeiro, e o do Amarildo.
Fórum – A solução desse problema com a polícia estaria na sua desmilitarização?
Milton Pinheiro – Essa é uma boa proposta, é uma saída circunstancial. Mas o Estado brasileiro tem como característica a violência. Nos seus primórdios, contra o negro, o pobre e a mulher. No seu intermediário, contra os trabalhadores que se levantavam para conseguir direitos básicos que existiam em outras partes do mundo. E hoje, a violência do Estado é contra todos que querem se manifestar para defender alguma coisa. Existe uma criminalização dos movimentos sociais e dos direitos civis.
Fórum – Quais aspectos da transição democrática o senhor considera crucial debater na atualidade?
Milton Pinheiro – É urgente rediscutir, a partir da Comissão Nacional da Verdade, a questão da Lei da Anistia. É necessário revê-la para punir os terroristas e assassinos que mataram, torturaram, prenderam e exilaram milhares de pessoas, inclusive alguns que têm os corpos desaparecidos até hoje, durante os 21 anos da ditadura. Estou falando do aparato das Forças Armadas, o aparato policial militar a serviço do Estado.
Fórum – Afinal, o que falta para que o Brasil complete a sua transição democrática e supere a herança da ditadura?
Milton Pinheiro – Para completar a transição e superar a ditadura, o Brasil precisaria ser um outro país. Mas podemos afirmar que ao lutar para vencer a lógica do regime militar e para suplantar essa nova norma social e política que nós temos, já estamos lutando por um outro sistema político. Falta muita participação dos trabalhadores, da juventude e da população em geral para superar isso e construir uma sociedade diferente, minimamente emancipada da iniquidade social que o capitalismo nos impõe.
Circule pelo centro de São Paulo à noite e você vai ver a extrema pobreza de mendigos, drogados, seres humanos abandonados. Para além de tudo isso que falei, as questões que dizem respeito aos serviços públicos, relações de trabalho, manifestações de trabalhadores e da juventude, ainda tem algo que é típico da iniquidade do capitalismo: a miséria social, a prostituição, a mendicância em via pública, o não ter comida, o não ter onde morar e o não ter como sobreviver. Tudo isso gera o caldo de cultura para a barbárie que nós conhecemos. O Brasil de hoje, para o desconforto da mídia, e talvez do governo, se avançou para resolver alguns problemas gerais, perdeu-se evidentemente no varejo das necessidades humanas.
Fórum – No mesmo ano em que se completam cinco décadas do golpe é também um ano de eleições. A proximidade dessas duas datas deve trazer as heranças ditadura para o debate eleitoral? Quais questões deveriam ser trazidas à pauta?
Milton Pinheiro – É um ano importante não só porque devemos lembrar o que ocorreu há 50 anos, mas também porque é um ano com um impacto político muito forte. O principal desse impacto é o que restou das manifestações de 2013, das gigantescas participações populares, independente do seu conteúdo. Muita coisa ruim teve na rua, de skinhead a nazista, mas tiveram as manifestações marcadas pela grande presença popular, de juventude e trabalhadores precarizados, cuja pauta não é por questões históricas e sim por serviços públicos de qualidade, principalmente a questão de transporte.
Ao lado disso tudo se apresenta um processo político eleitoral, que coloca de um lado o governo, com o seu processo de continuidade e com muitos problemas, inclusive porque não resolveu pontos cruciais do atendimento às necessidades da população. Em outro campo, uma direita política extremamente reacionária e sem capacidade de responder às demandas solicitadas pelo povo, mas que tem uma presença de mídia muito importante. Dissonante a esses dois campos, há partidos de esquerda e movimentos sociais que vão lançar candidaturas para marcar uma posição, no sentido de registrar a defesa de interesses clássicos dos trabalhadores e da população em geral.
Como se esse cenário não fosse suficiente, ainda temos grandes eventos esportivos, com manifestações muito grandes, algumas a favor, outras contra, em especial por causa das dificuldades impostas sempre aos mais pobres em virtude desse negócio extremamente comercial que se transformou a Copa do Mundo no Brasil. A Copa é, na minha concepção, um empreendimento para as elites continuarem tendo um lucro extraordinário em parceria com o Estado brasileiro.
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Juliana Campos Chaves, 22 anos, estudante de graduação em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo. Sou bolsista de Iniciação Científica da professora Dra. Christa Berger, na pesquisa “Memória no tempo do jornalismos”....
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